Crônica revê origens do dia internacional da mulher

“O dia das operárias, 8 de março, foi uma data memorável na história. Nesse dia, as mulheres russas levantaram a tocha da revolução”, afirmou Alexandra Kollontai sobre a história do Dia Internacional da Mulher. A memória do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é uma memória do fogo. Não daquela lenda de 1857, em que operárias grevistas teriam morrido queimadas, presas em uma fábrica de Nova York. Mas, da gigantesca manifestação das tecelãs grevistas de São Petersburgo, faísca da revolução russa.

Essa crônica ilustrada convida as leitoras e os leitores para essa viagem à memória do fogo, inspirada na cartilha O dia da mulher nasceu das mulheres socialistas do Núcleo Piratininga de Comunicação e no livro Memória do Fogo de Eduardo Galeano: “Fogo que contemplam os homens/ na noite, na noite profunda.” E aqui vamos em busca do fogo que ilumine a origem do 8 de março e nos retire da noite conservadora que oprime a mulher brasileira.

Era 23 de fevereiro de 1917, no calendário russo, 8 de março no calendário ocidental. A Rússia vivia uma grave crise econômica e política sob domínio da monarquia czarista. O povo sofria com a fome, agravada com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e levando milhões de soldados à morte. As tecelãs e costureiras de Petrogrado, em greve, organizaram uma grande manifestação pela paz e contra a fome. Nossas irmãs russas tomam as ruas gritando: “Pão e paz!”.

Leon Trotski descreve, no livro A revolução de outubro, o dia em que as trabalhadoras russas assumiram a vanguarda do movimento e derrubaram o czar Nicolau II:

“O 23 de fevereiro era o Dia Nacional das Mulheres”. Programava-se, nos círculos da socialdemocracia, de mostrar o seu significado com os meios tradicionais: reuniões, discursos, boletins. Na véspera, ninguém teria imaginado que este Dia das Mulheres pudesse ter inaugurado a revolução. Nenhuma organização planejava alguma greve para aquele dia. Ainda por cima, uma das combativas organizações bolcheviques, o Comitê dos tecelões de rayon, formado essencialmente por operários, desaconselhava qualquer greve. O estado de espírito da massa, segundo Kaiurov, um dos chefes operários deste setor, era muito tenso e cada greve ameaçava tornar-se um confronto aberto. O Comitê julgava que o momento de começar hostilidades ainda não tinha chegado e que o Partido ainda não tinha forças suficientes e, ao mesmo tempo, a união entre soldados e operários ainda era insuficiente. Por isso tinha decidido não chamar para greve, mas para se preparar para a ação revolucionária, num futuro ainda não definido. Esta era a linha de conduta preconizada pelo Comitê, na véspera do dia 23, e parecia que todos a tivessem aceitado. Mas, na manhã seguinte, contra todas as orientações, as operárias têxteis abandonaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegadas aos metalúrgicos para pedir-lhes que apoiassem a greve. Foi a contragosto, escreve Kaiurov, que os bolcheviques, seguidos pelos operários mencheviques e pelos socialistas de esquerda se juntaram à marcha. Como se tratava de uma greve de massa, era necessário comprometer todo mundo para sair às ruas e estar à frente do movimento. Esta foi a resolução proposta por Kaiurov e o Comitê de Vyborov se sentiu forçado a aprová-la. Pelos fatos, é então certo que a Revolução de Fevereiro foi iniciada por elementos da base que passaram por cima da oposição das suas organizações revolucionárias, e que a iniciativa foi tomada espontaneamente por um contingente do proletariado explorado e oprimido mais que todos os outros, as operárias têxteis. (...) O empurrão final veio das enormes filas de espera em frente às padarias”.

As trabalhadoras chamaram os companheiros para a greve geral. O povo ocupou as padarias e distribuiu pães aos famintos. Os cossacos foram impedidos de reprimir a manifestação pelas mulheres. Elas lembravam: São irmãos e filhos do povo russo ! E se não lutassem contra o czar, morreriam nas mãos dos exércitos inimigos nos campos de batalha ou de fome junto ao seu povo.

Vitoriosas, as trabalhadoras russas foram a faísca da revolução soviética. Em outubro de 1917, Alexandra Kollontai assume o Comissariado (Ministério) do Bem Estar Social, legalizando as bandeiras das mulheres trabalhadoras: direito ao voto, igualdade salarial, direito à educação, segurança na maternidade, divisão da responsabilidade dos filhos, creches, direito ao divórcio e ao aborto.

Embora o Dia da Mulher já tivesse sido criado em 1908, nos Estados Unidos, a proposta do Dia Internacional da Mulher Socialista só foi realizada em 1910, na 2ª Conferência Internacional da Mulher Socialista, por Clara Zetkin (1857-1933) e Rosa Luxemburgo (1871-1919). Em 1911, a primeira comemoração foi realizada em diferentes datas em vários países do mundo.

Alexandra Kollontai propôs, na Conferência das Mulheres Comunistas, a unificação da data do Dia Internacional das Mulheres para o dia 8 de março (23 de fevereiro no calendário russo), em homenagem à greve das tecelãs russas. O dia internacional da mulher em 8 de março nasceu como dia das mulheres que lutaram pelo fim da opressão da monarquia czarista e seguiram em frente, contra o capitalismo e a construção do socialismo.

Conhecer a verdadeira origem do 8 de março é muito importante, pois ao contrário da lenda de operárias aprisionadas e mortas queimadas, sua história marca nosso caminho de luta e vitória. Mesmo sob a opressão do czar, as mulheres mais exploradas não se acovardaram e nem se deixaram influenciar pelos companheiros mais céticos. É preciso lutar sempre. Com esse fogo que nos queima, façamos uma tocha.

Nunca haverá um momento favorável. Sempre dirão que somos loucas, radicais, incompreesíveis, que nossa bandeira contra a exploração não será levantada pelo povo. Também sempre dirão que nossas palavras não penetrarão o coração do povo. Não é verdade. Foram as mulheres mais exploradas que compreenderam as palavras: “Pão e paz”. E foram elas que levantaram alto a bandeira do Dia Internacional da Mulher Socialista, contra todas as violências, humilhações e explorações.

Ser feminista e ser socialista é antes de tudo um orgulho e, por isso, não se pode esconder a origem do nosso dia de luta. Não se pode apagar a luz do 8 de março, porque é a memória do fogo. Como no canto do fogo do povo banto: “Escute a minha voz: um homem te invoca sem medo.” Nós dizemos ao fogo: “Escute a nossa voz: as mulheres te invocam sem medo.” Não mais o fogo das fogueiras, onde nós morremos amaldiçoadas pelo ódio dos poderosos e fanáticos religiosos. Mas, o fogo que destrói os tabus, os preconceitos, por um mundo novo e livre. O fogo que iluminou o direito ao voto e, agora avança na conquista de direitos como a proibição da violência à mulher e a luta pela igualdade salarial. "Embora no Brasil, apareça como uma ideia nova e desvairada, o aborto legal e seguro é há muitos anos uma realidade em vários países do mundo"

Com a memória do fogo, levantemos todas as bandeiras das mulheres, com coragem para denunciar e lutar contra tudo o que nos oprime, inclusive a criminalização do direito de decidir sobre o nosso corpo. Uma das bandeiras mais antigas do 8 de março, depois do direito ao voto, é o aborto. Embora no Brasil, apareça como uma ideia nova e desvairada, o aborto legal e seguro é há muitos anos uma realidade em vários países do mundo, principalmente os mais ricos e desenvolvidos economicamente, no hemisfério norte do planeta. Mesmo aqueles em que o catolicismo já foi mais forte, como Portugal, Espanha e Itália. No hemisfério sul, com a superexploração...

No Brasil do século 21, sem a memória do fogo, a noite da ignorância penetrou em todos os espaços públicos e privados. Essa “noite conservadora” combina bem com a superexploração que estamos vivendo, chamada de “neodesenvolvimentismo” rumo ao Brasil Grande. As mulheres brasileiras têm sido queimadas na fogueira da mídia conservadora e nos rituais das bancadas direitistas por deferenderem suas opiniões e os seus direitos. Severamente perseguidas e criminalizadas pela elite brasileira, são satanizadas por proporem, por exemplo, a legalização do aborto. Diferente do mundo todo, a elite brasileira transformou o aborto em um tabu. Para esses senhores, nós, mulheres, não podemos decidir sobre os nossos corpos, mas eles podem defender, abertamente, a redução da maioridade penal. Por que condenam o aborto e fazem vistas grossas à pedofilia nas instituições religiosas? Por que condenam o aborto e não se preocupam com o crescimento da prostituição infantil?

É um tabu à brasileira. A burguesia brasileira de mãos dadas à burguesia internacional, está ganhando muito, mas muito dinheiro às custas das nossas riquezas naturais e da exploração do nosso imenso exército de reserva de mão de obra barata, dando quase de graça nossos produtos primários e pagando uma fortuna pelos produtos industrializados. Nesse projeto de Brasil capitalista, neoliberal,o que cabe a nós, mulheres? Além de exploradas com baixos salários, somos obrigadas a parir até a morte. Não é à toa que as novelas da Globo incentivam as adolescentes a assumirem, sem condições psicológicas e materiais, a gravidez indesejada.

No tabu à brasileira, a mulher é servida mal passada, seja na publicidade, na indústria cultural e no jornalismo canalha, seja na arena política em que os poderosos dominam. Graças ao tabu à brasileira, somos queimadas durante e depois da vida, para render audiência nos programas policiais e mesmo nos ditos sérios. Nada é sério, verdadeiro, sem a memória do fogo. É preciso ter coragem, é preciso perder o medo de dizer o que queremos, o que não queremos, o que pretendemos para a nossa vida e o nosso país, para um mundo melhor. E mais que dizer, é preciso nos unir, nos organizar, sair às ruas.

A verdade da memória do fogo será cantada nas ruas e nas praças do Brasil e em todos os países do mundo no dia internacional da mulher, o nosso 8 de março: Quem decide sobre o próprio corpo, decide sobre os destinos da nação e do mundo. Ou como diria a comunista de longa jornada, Fanny Abramovich, de um jeito que qualquer um possa entender, desde as crianças, os leigos e os sábios: “Quem manda em mim sou eu.” Sem medo do fogo, sem medo de se queimar, em memória do 8 de março, levantemos essa tocha: mulheres do mundo todo, à luta!

Fonte: Caros Amigos