“Antes, nós éramos pagos para pensar. Agora, para produzir”, afirma Bosi

O recente processo de intensificação do trabalho docente representa não apenas um aumento da quantidade deste trabalho, mas também uma mudança significativa do seu caráter. “Antes, nós éramos pagos para pensar. Agora, somos pagos para produzir. Precisamos discutir como lidar com isso. Essa é uma tarefa política que se impõe o nosso Sindicato”, provocou o professor da Universidade do Oeste do Paraná – Unioeste, Antônio Bosi, durante o painel “Trabalho docente e organização da categoria”, no 5º Encontro Intersetorial do ANDES-SN, em Brasília (DF), de 21 a 23/10.

De acordo com ele, as condições de trabalho no âmbito das instituições de ensino superior brasileiras vêm se modificando tanto nos últimos anos que a categoria se encontra aturdida. Até meados da década de 1980, o desenvolvimento da pesquisa acadêmica não era gerido por prazos rígidos pré-fixados e a obrigação de publicar resultados. “Muitas vezes a sala de aula era o principal laboratório docente, uma oficina artesanal onde a formação de novos profissionais não era um objetivo secundário”, acrescenta.

O quadro mudou drasticamente. “Nos últimos vinte ou vinte e cinco anos, esta experiência cedeu lugar às atividades de captação de recursos, realização e participação em eventos, publicação, consultorias, produção de patentes, prestação de diversos serviços etc. Uma das evidências mais gritantes desta mudança está expressa nas avaliações sobre os cursos de mestrado e doutorado que é realizada por nossos pares designados como consultores da CAPES. Atualmente, o mérito de um programa não é mensurado por sua capacidade de formar bons profissionais, mas pelo volume e “qualificação” das publicações docentes! Como é que nosso trabalho adquiriu este sentido?”, questiona.

Expropriação do trabalhador

Comparando o processo de intensificação do trabalho docente com o de conversão dos artesões em trabalhadores especialistas, conforme descrito por Marx, o professor ressalta que a expropriação do trabalhador não é um simples ato de sequestro dos meios materiais de produção, mas atinge, cancela, limita ou condiciona a autonomia ligada ao trabalho de modo a subordinar os trabalhadores. “A expropriação do trabalhador tem sido uma necessidade imperiosa para que o capital refaça constantemente suas relações de dominação para garantir a extração da mais valia nas mais variadas formas vividas por nós”. 

Ele reconhece, obviamente, que as escolas e as universidades públicas nunca foram espaços de plena autonomia para a realização de qualquer desejo. Entretanto, esclarece que, até meados da década de 1980, a presença do capital nas instituições de ensino superior foi mais recessiva do que dominante. “No caso específico da pesquisa, a bolsa de produtividade financiada pelo CNPq existe desde, pelo menos, 1975, mas até o final dos anos 80 não compôs com qualquer tipo de arsenal político e ideológico que tivesse o objetivo de seduzir a massa de docentes e condicionar seu trabalho à meta de conseguir tal ‘benefício’”, exemplifica.

O professor assegura que, da mesma forma, na universidade de 25 anos atrás, a competição também não existia nos padrões atuais, onde prestígio e status são conferidos por quantidade de produtos e de projetos financiados, e não por mérito e relevância do trabalho docente.

Ele resume em pelo menos três os pontos de inflexão que resultaram nesta nova cultura acadêmico-científica centrada no aumento da produtividade: uma contínua e acelerada subtração e “privatização” dos meios de produção docentes; um processo de avaliação do trabalho docente a partir da pós-graduação stricto sensu; e uma relevante adesão docente a tal processo.

Necessidades do capital

Através de dados obtidos em pesquisas oficiais, o professor demonstra que, cada vez mais, o CNPq e as Fundações Estaduais de Apoio à Pesquisa têm convertido seus recursos para pesquisas e estudos que aparelhem e potencializem o trabalho docente à medida da necessidade do capital. “Uma das conseqüências desse processo é que a qualidade da produção acadêmica passa então a ser mensurada pela quantidade da própria produção e por valores monetários que o docente consegue agregar ao seu salário e à própria instituição”.

Exemplo é o crescimento da pós-graduação brasileira, mesmo sem a devida e necessária contrapartida financeira. Em 1965, havia no 27 cursos de mestrado e 11 de doutorado. Em 1996, já eram 1.083 de mestrado e 541 de doutorado.  “Antes da última avaliação trienal feita pela Capes em 2010, havia 2.594 cursos de mestrado, 1.516 cursos de doutorado e 284 cursos de mestrado profissionalizante. Estes números representam um crescimento de 139,5% para os cursos de mestrado e de 180,2% para os cursos de doutorado nos últimos 14 anos. Foi neste território que se construiu os valores estruturantes de uma cultura voltada para a produtividade acadêmica e científica”.

Paralelamente, o dados apresentados pelo professor demonstram que as bolsas para mestrado tiveram redução de 3 para 2 anos e meio, no início da década de 1990, e de 2 anos e meio para 2 anos, no final dessa mesma década. “Nessa nova ossatura institucional, os mestrandos e doutorandos quase sempre recebem pressão de seus orientadores e dos programas (que pleiteiam sempre a melhor pontuação na CAPES) para cumprirem esses prazos a despeito da qualidade final de seus trabalhos”, denuncia.

Pobres, sujos e malvados

Declarando-se bastante pessimista com o quadro, Bosi fez uma dura crítica à postura assumida pela categoria em relação ao problema. “Somos feios, sujos e malvados porque uma vida dedicada somente ao dinheiro e ao status acadêmico produtivista é desumanizadora. Mas também somos feios, sujos e malvados para nós mesmos à medida que tendemos a tratar o produtivismo apenas com repulsa ou, no limite, entre a condescendência e o desdém”.

Para ele, esta postura se reflete, inclusive, em uma das deliberações do último congresso do ANDES-SN, realizado em janeiro, em Belém (PA): “denunciar o papel da CAPES e dos princípios e critérios de avaliação produtivista em curso, sobre a intensificação do trabalho docente, a redução de prazos para a formação de mestrandos e doutorandos, o incentivo à competição, a apropriação privada e a mercantilização do conhecimento”.

Porém, é nas decisões aprovadas por este mesmo congresso que o professor vislumbra a saída para o impasse, por meio da deliberação do ANDES-SN organizar Seminários Regionais e um Seminário Nacional para discutir as políticas de avaliação e qualificação para as universidades brasileiras, instituídas pelas agências de fomento, visando construir uma proposta crítica, contrapondo-se ao modelo utilizado.

O professor acredita que os seminários poderão proporcionar o espaço necessário para reflexão sobre processo de reorganização do trabalho docente. “Será mais uma oportunidade para um diálogo com nossos pares, mais próximo dos sabores e dissabores experimentados no trabalho docente, naquele lugar que denominamos de “base”, onde se vive a intensificação do trabalho e o ideário da produtividade acadêmica, no “chão da fábrica”, onde somos feios, sujos e malvados. Não é lá que se começa a construção da hegemonia?“.

Fonte: ANDES-SN