Especial coronavírus: Entrevista com Cléber de Jesus

As aulas da educação básica na Bahia podem retornar com as atividades presenciais no próximo período. A sociedade baiana tem debatido se há ou não condições de segurança para que isso ocorra. Para contribuir com o debate, convidamos Cléber de Jesus, professor do Departamento de Saúde II da UESB para discutir biossegurança e a reabertura do sistema de ensino na Bahia.

O governador Rui Costa sinalizou que pretende retornar com as aulas das escolas estaduais, com a continuidade da ampliação do número de infectados. O mesmo acontece também em outros Estados e na educação municipal. Como você avalia a posição desses gestores na perspectiva da biossegurança?

Em 05/08/2020, comparativamente ao cenário epidemiológico nacional, o Estado da Bahia encontra-se na 6ª colocação no número acumulado de óbitos (3.736 mortes), mesmo com a letalidade (2,1%) abaixo do valor nacional (3,4%) (1, 2). Portanto, neste cenário epidemiológico onde a curva epidêmica ainda não apresentou redução que sinalize o efetivo controle da epidemia, a reabertura do sistema de ensino colocando um grande quantitativo de pessoas em contato direto favorecerá a intensificação da transmissão do vírus, com repercussões negativas sobre o crescimento de casos graves e óbitos.

É realidade comum salas de aula com cerca de 40 estudantes, sem espaço para estabelecer o distanciamento mínimo de 1,5m. Há possibilidade de impedir a proliferação do coronavírus em locais como este?  

A estrutura física das escolas e universidades sempre foi um grande problema em nossa sociedade. Portanto, além de aspectos como o número de alunos por sala, o distanciamento físico entre as cadeiras e pessoas, também há outros elementos como a reduzida ventilação natural nestes ambientes, e sobretudo, temos que pensar no tempo de permanência dos sujeitos nestes locais. Assim, um ambiente pouco ventilado e com várias pessoas permanecendo neste espaço por um período de tempo relativamente grande, o risco de proliferação do vírus é extremamente elevado.

Muito tem se falado que o retorno das aulas está condicionado a alterações na infraestrutura das escolas e a adoção de protocolos, como o uso de máscaras e disponibilização de álcool gel. Existem reformas capazes de assegurar a biossegurança escolar? O uso de máscaras e uso de álcool gel são protocolos suficientes?

A discussão sobre a reabertura das escolas e universidades para aulas presenciais têm sido realizadas em todo o mundo (3). As mudanças na estrutura física das unidades escolares, como disponibilidade de água, sabão, álcool gel, uso de máscaras e distanciamento físico são essenciais para qualquer tipo de reabertura que esteja sendo planejada. Entretanto, para além destes requisitos, tem sido recomendado como necessário a ampliação da capacidade de testar, rastrear contatos e fazer quarentena nos ambientes escolares, tudo isso como forma de monitorar possíveis surtos nestes espaços (4, 5). Isto demanda de uma grande capacidade dos órgãos de vigilância epidemiológica local e estadual.

O governador anunciou que fez testes em professores e estudantes em três cidades, Ipiaú, Itajuípe e Uruçuca e disse ter encontrado “10% de professores e estudantes contaminados”. Se pudermos assumir que este número vale para outras cidades, não é arriscado retomar as aulas já tendo a certeza de que há estudantes e professores contaminados?       

Este dado nos revela ao menos dois aspectos importantes, o primeiro é que o fechamento das escolas/universidades deve ter tido um efeito relevante na redução do número de contágios em todo o estado da Bahia, e segundo, é que há pelo menos 90% dos profissionais e estudantes ainda susceptíveis a se contaminarem, portanto um quantitativo muito grande de pessoas. Deve-se considerar que entre estes estudantes e professores há aqueles que fazem parte do grupo de risco para desenvolverem quadro grave e óbito pela doença, portanto a reabertura das escolas/universidades irá expor um grande número de pessoas, sejam professores e estudantes, mas também os residentes de suas respectivas casas.

Segundo os estudos científicos, na maioria das pessoas que pegam a covid-19 os sintomas se manifestam de forma leve ou nem se manifestam. Depois de quanto tempo de contaminada pelo vírus a pessoa deixar de ser capaz de transmitir a doença para outra pessoa? Que tipo de teste (RT-PCR ou sorológico IgG, IgA ou IgM) deve ser feito na pessoa para saber que ela já contraiu a doença, está imunizada, mas não pode transmiti-la mais?

Na COVID-19, a carga viral do SARS-CoV-2 na faringe é mais elevada logo antes ou no período do início dos sintomas, de 2 dias antes dos sintomas até 5 dias após início, sendo estimado que cerca de 44% da transmissão ocorre no período pré-sintomático (6). Portanto, a partir do conhecimento da história e mecanismos de transmissão da doença, até o momento, é que tem sido recomendado o período de 14 dias, a partir dos primeiros sintomas, de quarentena para pessoas diagnosticadas e seus contactantes próximos.

Sobre os testes podemos dizer o seguinte, o RT-PCR serve para detecção do vírus na fase inicial, sendo importante para investigar casos e contatos que permaneçam capazes de transmitir o Sars-Cov-2 para outras pessoas. Deve ser realizado nos primeiros 7 dias após o início dos sintomas ou na identificação de contatos de casos confirmados, mesmo que sem sintomas. Já os testes sorológicos, de modo geral, para detectar a presença de anticorpos, são úteis para identificar pessoas que já foram expostas ao vírus (com ou sem sintomas), deve ser realizado após 8 dias do início dos sintomas e/ou para avaliação de exposição pregressa ao vírus, mesmo em pessoas assintomáticas. São relevantes para inquéritos sorológicos, onde se busca identificar o percentual da população que já teve contato com o vírus (7).

Do ponto de vista da transmissibilidade, de maneira geral, os testes sorológicos com resultado IgG positivo e IgM negativo, acredita-se que estas pessoas tenham algum grau de imunização e não transmitam o vírus naquele momento. Entretanto, cabe destacar que ainda não há evidências científicas suficientes de que a presença de anticorpos (ex. IgG positivo) garanta proteção contra novas infecções, também não se sabe ainda por quanto tempo essa “imunidade” permanece e mesmo sobre a qualidade efetiva desta resposta imune. Assim, este é um capítulo da pandemia que ainda há mais perguntas do que respostas e muito para ser descoberto. Portanto, mesmo as pessoas que já tenham tido a infecção pelo novo coronavírus, consideradas recuperadas, devem manter as medidas de proteção.

Há, efetivamente, alguma metodologia de testagem (em termos de periodicidade, tipo de teste, número de pessoas testadas) que permitiria o retorno com segurança das aulas presenciais?

Efetivamente não há, é algo que ainda está em processo de construção. O que tem sido observado em experiências em outros países, foi a retomada do ensino presencial em cenários onde a epidemia estava em franca redução do número de casos novos e dos óbitos, ou seja, com controle efetivo da epidemia e vigilância para o surgimento de novos surtos em locais específicos. Portanto, é preciso que tenhamos indicadores epidemiológicos de que a epidemia está sob controle e em fase de redução, com investimento em melhoria da estrutura física das unidades escolares e universidades, e uma estrutura de vigilância capaz de realizar testes, rastreio de contatos e isolamento para prevenir surtos locais (8). Assim, é preciso ter muita cautela para que o retorno as aulas presenciais não representem uma exacerbação da pandemia neste momento.

REFERÊNCIAS

(1) Painel Rede Covida. Disponível em: https://painel.covid19br.org/#/brasil

(2) Boletim Epidemiológico nº 134 de 05/08/2020 Bahia. Disponível em http://www.saude.ba.gov.br/

(3) James Gallagher. Testing and tracing 'key to schools returning', scientists say. BBC News Health, 04 Agosto de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/news/health-53638083 

(4) Sheikh, A., Sheikh, A., Sheikh, Z., & Dhami, S. (2020). Reopening schools after the COVID-19 lockdown. Journal of global health10(1), 010376. https://doi.org/10.7189/jogh.10.010376

(5) Jasmina Panovska-Griffiths, Cliff C Kerr, Robyn M Stuart, Dina Mistry, Daniel J Klein, Russell M Viner, Chris Bonell. Determining the optimal strategy for reopening schools, the impact of test and trace interventions, and the risk of occurrence of a second COVID-19 epidemic wave in the UK: a modelling study. The Lancet Child & Adolescent Health, 2020, ISSN 2352-4642, disponível em: https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30250-9.

(6) He, X., Lau, E.H.Y., Wu, P. et al. Temporal dynamics in viral shedding and transmissibility of COVID-19. Nat Med 26, 672–675 (2020). https://doi.org/10.1038/s41591-020-0869-5

(7) Rede Covida. Ciência, Informação e Solidariedade. Nota Técnica sobre Considerações sobre o uso e a interpretação dos testes diagnósticos na Covid-19, revisada em 17 de Julho de 2020. Disponível em: https://covid19br.org/relatorios/consideracoes-sobre-o-uso-e-a-interpretacao-dos-testes-diagnosticos-na-covid-19/

(8) W John Edmunds. Finding a path to reopen schools during the COVID-19 pandemic. The Lancet Child & Adolescent Health, 2020. ISSN 2352-4642. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30249-2.